terça-feira, 25 de dezembro de 2007

ex machina

-Juliô!
Meio dia e quinze! Ê, dorminhoco!
Foi da porta da rua à do quarto de Julinho, deixando sapatos e bolsa pelo caminho. Com a idade dele, ela já ajudava a mãe no caixa da loja. Julinho não; todo dia a mesmíssima coisa... Gritar, derrubar a porta, qualquer tentativa seria em vão. “Julio nunca levanta antes da uma”. Bateu levemente na porta desceu a escada afrouxando o sutiã e soltando o cabelo. Só um bom banho no horário de almoço salva dias corridos e abafados.

-Acorda Julio, meio dia e meia!
Ao chacoalhar o garoto, este, que dormia com a barriga para cima e a boca aberta, engasgou com a saliva e tossiu. Lia sentiu respingar em seu braço. Enxugou-o no avental e suspirou. Julio gemeu baixinho e segurou-se aos lençóis com força.“É a idade”, Lia sorriu quase nada. O rosto do garoto ruborizou e contorceu num esgar sonâmbulo. Lia desviou o olhar: as sombras dos móveis balançavam um pouco, vozes cochichavam em baixo da cama, atrás do armário, atrás da cortina. Fechou os olhos. Sentiu então pontadas nas têmporas e os cochichos viraram gritinhos agudos, como os de grandes móveis metálicos quando arrastados. O chão tremeu. Lia tremeu. O estojo do baixo elétrico de Julio caiu em um barulho grave e seco.
Mão na testa, suor. Alucinação. “Já passou”.
-Filho, acorda!
-Uhn uhn uhn... Ahhhhhh! – Espreguiçou de olhos abertos e aconchegou-se à mãe na posição fetal.
Lia ajeitou o cabelo do filho e saiu. Julio dormia como um anjo.

“Varrer, limpar”.
Lia cantarolava; sorria nervosa. A sala estava suja: dois pratos com resto de pizza, copos sujos e a coca fora da geladeira. Enquanto derramava a coca na pia, Lia pensava em quanto Reginaldo fazia falta. Não que fosse muita, menos ainda que guardasse qualquer amor pelo vagabundo; Qualquer homem ou mulher serviria, contanto que pudesse dividir as responsabilidades com alguém confiável.
- Ai, ai Deus meu! – suspirou; não voltaria ao quarto, Julio que acordasse sozinho - Moleque! Ah se estiver matando aula...Deixa estar! Espera até a próxima reunião de pais...

Às 13:00, a terra tremeu de novo. A dor de cabeça só fazia piorar. Manchas amareladas piscavam nas paredes brancas, nos móveis brancos, no branco dos olhos no espelho do banheiro. O mundo acabava. Vomitou, deu a descarga, bochechou a água gelada da pia, molhou a nuca, os punhos, o rosto. Recompôs-se.
- Chega, Julio. Vai, acorda, eu já estou atrasada... Anda, de pé!
- Ow, mãe, que saco... Me deixa em paz...
- Vai almoçar enquanto está quente!
- Ow, chega. Cuida da sua vida.
Resmungando a caminho da porta, vestiu os jeans, enfiou o boné na cabeça e apanhou a mochila. Sacou um pedaço de pizza da geladeira
- Escuta aqui, mocinho... Não lavas nem a própria louça, acordas depois do meio dia... Desse jeito não dá!
Engoliu a pizza e, à porta, calçou o tênis sem desamarrar
- Julio, espera!
Ao abrir a porta, Julio foi engolido por um verme gigante.
Pedro

sexta-feira, 21 de dezembro de 2007

Primeiro parágrafo do romance Cauterizarei teu coração com a bituca de meu cigarro

Cuspiu no meu café e saiu. Ah, se soubesses... Se lembrasses, como eu, das circunstâncias em que nos conheceramos haverias de encontrar agravantes em ofensa tão corriqueira. E, se recordasses ainda de que minha fortuna fora toda plantada nos cafezais de meu pai, perceberias o escárnio em sua saliva... Não, não se trata de saliva. Afinal, vinha provando da mesma ao longo de quase uma década. Foram o catarro e a raiva que adensaram seu cuspe e esfriaram meu café. Por que não lhe dei um tapa ao menos, é isso o que te intriga, não? Confesso que na hora não me ocorreu e, fica entre nós, a verdade é que mereci. Sim, devia resguardar minha honra de algum modo, mas não te oporás à idéia de que mais grave do que uma cuspidinha na honra é ver a esperança da perpetuação da espécie, família a e fortuna dando-lhe as costas, não é? Pois bem, conto agora a solução que encontrei para o impasse:
Pedro Rocha