quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

Queria ser Kurt Russell


“Claro que lembro: Você descia de moto a escadaria do metrô na Sé e eu ia na garupa. Como se fosse em uma versão baixo orçamento de Fuga de Los Angeles, você dizia. As pessoas desviavam quando passávamos. Saltávamos a catraca e descíamos as escadas e aos trilhos, bem na hora em que chegava um trem. As luzes dentro do metrô eram como num túnel na Ayrton Senna, só que não havia trânsito.”
“Ta, mas deixa eu te contar o final: Lembra pra onde a gente ia? Ana Rosa. Quando a gente chega no Paraíso, tem um trem parado. Consigo ver a cara do motorista do trajeto contrário antes de acordar com meu próprio grito, solitário na madrugada da Aclimação.
Minha terapeuta dizia que tudo estava relacionado à minha homossexualidade reprimida, que o que eu queria era que você, por trás de mim, tivesse um pau. Os dois sabemos as conseqüências de minha saída do armário imaginário. É estranho, desculpa falar isso agora, mas ainda sinto sua falta... Engraçado, eu queria ser Kurt Russell e você me largou por causa de um desses carinhas que fazem stand up comedy. Um babaca.”
“Nossa, como você viaja. Foi você quem pediu pra ficar um tempo sozinho, Felipe”.     
“Tá. Mas agora está tudo claro. Volta?”
“Não mesmo. Vamos embora.”
“Pode deixar. Essa é minha.”
“Não, mesmo.”

segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

Ah, se eu fosse um cão

Hoje cedo, uma pomba me desafiou no Largo da Ana Rosa. Procurava, eu, como de costume, restos de comida no terminal de ônibus. Três pombas sobrevoavam a Vergueiro e fizeram uma suave curva em direção à estação. Uma delas me reconheceu de alguma corrida que lhe dera, de alguma migalha que não deixara, de alguma pulga compartilhada. Confesso que não me lembro de nada em especial. Pombas, aliás, parecem-me todas iguais. Ela me encarou e fez um movimento descendente em minha direção. Centímetros antes de me atingir, ela voltou a subir, mas o estrago já estava feito.

Sei que completou a parábola apenas porque já havia triunfado. No vértice, ela me encarou e, naquele exato momento, dei um passo em falso para a esquerda, quase dancei em frente a ela. Entende? Ela era Garrincha; eu, mais um João.

Quando se é humano, sempre se pode fingir um tropeço, ou que se dança por causa da música no ipod ou apenas porque o dia está bonito, mas não foi assim. Ela soube que eu tivera medo, que meu impulso fora de abaixar, cobrir a cabeça e implorar por misericórdia. Quando ela passou, eu poderia, ainda, ter latido para ela triunfante. Mas e se ela voltasse?

sábado, 6 de novembro de 2010

Todas as quartas-feiras de reis

Não tenho dúvidas de que a vida seja um constante surpreender. Surpresas, entretanto, muitas vezes, tornam-se estranhamentos; não é raro fazerem brotar rugas que, quando em vez, internalizam-se e transformam-se em questionamento. Nos casos mais extremos, estes viram ideias, monstros subcutâneos irrequietos que só acalmam quando despejados numa folha de papel. Apenas por isso, escrevo agora da cerveja que tomei ontem com um colega também escriturário; por necessidade.
Foi a terceira. Lembro bem: depois de enfadonha conversa sobre distância e proximidade de dois homens, um a 35 anos no banco, próximo da aposentadoria e outro recém chegado à maioridade e à instituição, quando já me predispunha a ir embora daquele bar na Praça Antonio Prado, a conversa tomou outro rumo. Falou-me de suas quartas-feiras. Disse que pagaria a conta e explicou-se:
“Sei que não vou ficar milionário, mas renovei minha capitalização este mês. E renovarei enquanto viver. Acho poucos esses R$ 100,00 reais que mês após mês pagam a melhor sensação de todas. Toda quarta-feira tem um sorteio. Repito, sei que não vou ganhar. O que acontece é que às quartas-feiras minha razão se suspende; às quartas feiras, meu corpo acorda vencedor; só falta que me notifiquem na quinta, mas isso é mera formalidade. Quarta-feira minha postura melhora. Acordo mais cedo para correr no parque e levar as crianças para tomar café na padaria; prometo à mulher permitir que escolha o passeio do final de semana. Trabalho muito, mas é com certo distanciamento bondoso para com as pessoas que vêm procurar dinheiro, segurança, etc.; problemas que não me afligem mais. Olha bem nos meus olhos. Tem alguma dúvida de que fala com um rei?”
Vi em seus olhos a certeza e a altivez que apenas reis e loucos podem ter. Olhei para a o meu copo vazio e para a garrafa cheia. Completei o copo com a cerveja gelada. Lembrei do nome do disco do Faith no More e pensei em como meu colega tornava as coisas mais complexas; rei e tolo na razão de um para sete já não parece tão mau negócio. Pensando bem, nem o Super-Homem tem esta sorte. Pensei, aliás, na desventura do Super-Homem que, mesmo em seus melhores momentos é vulnerável à kriptonita e, pior, mesmo sendo sempre super-homem, tem que fazer de conta que é Clark Kent a maior parte do tempo. Meu amigo um dia por semana é inabalável.
Não posso, contudo, esconder uma dose de melancolia ao ver a felicidade vendida em certificados. Talvez seja porque me lembra daquele livro de auto-ajuda que dizia que a felicidade está dentro de nós e, agora, isso faça muito sentido: um certificado, uma cartela, uma cápsula ou um livro insemina uma ideia de felicidade e esta germina e floresce alheia ao lixo que a envolve.
Cogitei sugerir que exorcizasse sua mania escrevendo sobre ela. Mas, caso assim fizesse, não conseguiria tirar a ideia da minha cabeça, além do que, não desagrada de todo ter um amigo rei e benevolente de vez em quando. Fiz a reverência devida e corri para o metrô. Já eram quase nove e precisava fazer baldeação ainda para chegar ao Pacaembu.

domingo, 1 de março de 2009

Quem é do mar não enjoa.
Eu sou do mar.
Pedro é do mar.
Richard também é do mar.
Vinícius é do mar.
E a Débora manda chamar a polícia.




Clarissa

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2009

DeLorian

- Quando a gente bebe e não acontece nada, a gente se sente esperto porque entende tudo; O problema é que às vezes a velocidade dos acontecimentos não condescende em nada com nossa embriaguez e o passado se torna mais nebuloso que o futuro.

- Acho que já percebi aonde você quer chegar. Se quiser falar fala rápido.
- Tá bom. Me arranja um cigarro, chefe? Quebra essa, vai? Deve ser meia-noite, a rua esta vazia e, com todo o respeito, o senhor acabou de me acordar... Tem isqueiro? Sempre fui sonâmbulo. Uma vez, quando morava na ilha -no começo da Avenida Campeche, quase na Pequeno Príncipe... Não conhece? Florianópolis. Esquece. O que interessa é que era perto da praia. Bem perto, aliás. Eu era moleque, devia ter uns 10 ou 12 anos de idade; uma manhã de domingo, minha mãe me acordou com palavrões e palmadas. Deviam ser umas 8 e eu dormia na areia. Descobri aos poucos a que se devia o esporro: minha mãe acordara pouco antes sentindo cheiro de gás e encontrou meu irmão mais novo desmaiado em frente ao fogão, que vazava. Resumindo: dados os indícios e uma discussão besta que tive com ela na véspera, fui acusado de tentativa de homicídio e condenado à cinta e ao remorso.

- Merecia mais.

- Dias depois, no que acredito ser o estágio mais próximo do sono que a consciência de um assassino mirim permite, ouvi meu irmão rezando de madrugada. Dizia que sentia pena de mim, que comungava meu sofrimento, mas antes eu do que ele ser detestado pela família. Tinha medo. E, afinal, que havia de errado em querer ser piloto de avião? Até hoje era segredo, mas aquela noite ele apanhou, muito.

- E ele não contou pra sua mãe de manhã?

- Não. Ele não gostaria que ela soubesse o que ele fazia com os amiguinhos atrás da escola.

- O que ele fazia?

-Isso não vem ao caso, seu guarda.

- Nem essa história de sonâmbulo que mata a família e dorme na praia. Você está aqui, com uma faca suja de sangue, desmaiado em cima de uma jovem morta; a facadas, não por acaso. Levanta daí, rápido!

- Um momento, sim? Apesar do sangue, da faca e da morta, custo ainda a acreditar que eu tenha matado. Dê-me o resto da noite e uma garrafa de cachaça que, até de manhã, ou eu descubro a verdade, ou eu mudo o passado.

segunda-feira, 6 de outubro de 2008

Noturnas

Ela bebia um campari. Pra mim, campari nunca fez sentido sem cigarro. Ela aceitou, mas não acendeu. Manteve-o apontado para o chão entre o indicador e o médio.
Os olhos verdes roíam os botões da minha camisa, provavelmente imaginando músculos demais e muito menos barriga do que a roupa escondia.
- Eu sei bem o que você quer... Saber...
“Risadinha safada”, pensei. Ela sacou um lenço; da bolsa, que fique claro, pois naqueles jeans não cabia nada além dos 60 quilos de seu corpo bem feito. Umedeceu o lenço no campari, desinfetou meu indicador direito e colocou-o em sua boca. Estremeci ao sentir os caninos da vampira.
Ela sorriu. Retirou meu dedo da boca e largou a mão. Esta de imediato caiu, como se não estivesse grudada no corpo; fez então um curto movimento de pêndulo e já se escondia no bolso da calça.
- Vem cá, ela chamou com o indicador.
“Só venha se tiver pegada”, desafiou com os olhos.
"Ah, se tenho senhorita".
- Lá fora, sussurrou.
Ela me levou para fora, pro escuro, prum beco. Beijou-me com força, lambeu meu pescoço, mordeu. Levantou minha camisa aos poucos, se aproveitando de cada um de meus excessos de carne, lambeu o suor de meu peito e desceu ao umbigo. Curvei-me para alcançar suas coxas, mas não conclui o movimento; Ela acertou meu queixo com a nuca. Fui ao chão.
“Trouxa”, pensamos os dois; eu, no chão, sangrando; ela, iluminada pela luz do poste, já na esquina, levando meu sangue e minha carteira.

sábado, 30 de agosto de 2008

Protético

O galo do pet shop cacareja quando acendem a luz.