sábado, 6 de novembro de 2010

Todas as quartas-feiras de reis

Não tenho dúvidas de que a vida seja um constante surpreender. Surpresas, entretanto, muitas vezes, tornam-se estranhamentos; não é raro fazerem brotar rugas que, quando em vez, internalizam-se e transformam-se em questionamento. Nos casos mais extremos, estes viram ideias, monstros subcutâneos irrequietos que só acalmam quando despejados numa folha de papel. Apenas por isso, escrevo agora da cerveja que tomei ontem com um colega também escriturário; por necessidade.
Foi a terceira. Lembro bem: depois de enfadonha conversa sobre distância e proximidade de dois homens, um a 35 anos no banco, próximo da aposentadoria e outro recém chegado à maioridade e à instituição, quando já me predispunha a ir embora daquele bar na Praça Antonio Prado, a conversa tomou outro rumo. Falou-me de suas quartas-feiras. Disse que pagaria a conta e explicou-se:
“Sei que não vou ficar milionário, mas renovei minha capitalização este mês. E renovarei enquanto viver. Acho poucos esses R$ 100,00 reais que mês após mês pagam a melhor sensação de todas. Toda quarta-feira tem um sorteio. Repito, sei que não vou ganhar. O que acontece é que às quartas-feiras minha razão se suspende; às quartas feiras, meu corpo acorda vencedor; só falta que me notifiquem na quinta, mas isso é mera formalidade. Quarta-feira minha postura melhora. Acordo mais cedo para correr no parque e levar as crianças para tomar café na padaria; prometo à mulher permitir que escolha o passeio do final de semana. Trabalho muito, mas é com certo distanciamento bondoso para com as pessoas que vêm procurar dinheiro, segurança, etc.; problemas que não me afligem mais. Olha bem nos meus olhos. Tem alguma dúvida de que fala com um rei?”
Vi em seus olhos a certeza e a altivez que apenas reis e loucos podem ter. Olhei para a o meu copo vazio e para a garrafa cheia. Completei o copo com a cerveja gelada. Lembrei do nome do disco do Faith no More e pensei em como meu colega tornava as coisas mais complexas; rei e tolo na razão de um para sete já não parece tão mau negócio. Pensando bem, nem o Super-Homem tem esta sorte. Pensei, aliás, na desventura do Super-Homem que, mesmo em seus melhores momentos é vulnerável à kriptonita e, pior, mesmo sendo sempre super-homem, tem que fazer de conta que é Clark Kent a maior parte do tempo. Meu amigo um dia por semana é inabalável.
Não posso, contudo, esconder uma dose de melancolia ao ver a felicidade vendida em certificados. Talvez seja porque me lembra daquele livro de auto-ajuda que dizia que a felicidade está dentro de nós e, agora, isso faça muito sentido: um certificado, uma cartela, uma cápsula ou um livro insemina uma ideia de felicidade e esta germina e floresce alheia ao lixo que a envolve.
Cogitei sugerir que exorcizasse sua mania escrevendo sobre ela. Mas, caso assim fizesse, não conseguiria tirar a ideia da minha cabeça, além do que, não desagrada de todo ter um amigo rei e benevolente de vez em quando. Fiz a reverência devida e corri para o metrô. Já eram quase nove e precisava fazer baldeação ainda para chegar ao Pacaembu.